| Articolo sottoposto a Peer Review

Singularidades de uma rapariga loira: uma tradução intersemiótica

 ARTICOLO SCIENTIFICO

  • Data ricezione: 11/01/2023
  • Data accettazione: 01/02/2023
  • Data pubblicazione: 21/03/2023

Abstract

Nel 2009, prodotto dalla Produção filmes do Tejo esce il film Singularidades de uma Rapariga Loira, diretto dal celebre regista portoghese Manoel Oliveira (1908-2015). Il film riprende l’omonimo racconto di Eça de Queirós (1845-1900). Il presente lavoro analizza le principali caratteristiche testuali del testo queirosiano e il modo in cui il regista realizza una traduzione intersemiotica individuando i principali segni del testo stesso.

 

In 2009, produced by Produção filmes do Tejo, the film Singularidades de uma Rapariga Loira was released, directed by renowned Portuguese director Manoel Oliveira (1908-2015). The film takes up the short story of the same name by Eça de Queirós (1845-1900). This paper analyzes the main textual features of the text of Eça and the way the filmmaker makes an intersemiotic translation by identifying the main signs of the text itself.


Parole chiave
Keywords

1. Introdução

«Começou por me dizer que o seu caso era simples» (Queirós 2009, p. 167): o incipit do conto de Eça de Queirós (1845-1900) Singularidades de uma rapariga loira (que se vai repetir depois de um rico preâmbulo) parece deixar entender uma linearidade narrativa e um enredo simples. Mas, como nos habituou Eça nos romances, assim como nos contos, nada ressultará nem linear nem simples: «Il primo aggettivo qualificativo del racconto – sugere Maria Serena Felici – è ironico: la storia viene definita come ‘semplice’, mentre il lettore si accorgerà che è alquanto complessa» (Felici 2018, p. 103). O conto define-se portanto desde o início por uma profunda ironia da linguagem, através das escolhas lexicais e estilísticas: objetivo deste trabalho será verificar como a transposição fílmica, que é uma tradução intersemiótica, reproduz esta e outras caraterísticas da linguagem queirosiana.

No título aparecem de facto três elementos que desde o princípio despertam curiosidade e anunciam insídia: singularidades, rapariga, loira. Já o tema da “singularidade” abre por um lado perspetivas de unicidade, irripetibilidade, incapacidade de reprodução do mesmo fenómeno, e por outro a descrição exclusiva àquela situação, à peculiaridade daquela pessoa que não pode ser projetada em outros contextos; o tema da singularidade afirma portanto tanto a particularidade da pessoa que se apresenta, quanto a sua excentricidade, visto o seu modo extraordinário de pensar e de atuar. A palavra “singularidade”, desta forma, recolhe em si a excepcionalidade e extravagância não só da pessoa de que se irá falar mas de toda a situação que ela irá criar à sua volta. O plural acentua esta ambiguidade.

Segue-se depois o binómio substantivo-adjetivo “rapariga loira” que para o leitor da obra queirosiana é fácil de interpretar, considerando como o elemento feminino seja nela fortemente marcado com conotações negativas e como o adjetivo que acompanha o substantivo deixe pressagiar todo o jogo do duplo que a simples alternância ortofonética abre (loura/loira): um loiro que muito evoca a figura inesiana na literatura portuguesa e que abre o leque das mulheres queirosianas cuja côr do cabelo se confunde com a qualidade distintiva das próprias figuras mulíebres: é a Maria da Piedade de O Moinho com o «seu olhar de virgem loura» (Queirós 2009, p. 217); é Luísa do Primo Basílio, uma linda jovem loira; é Maria Eduarda de Os Maias. Mulheres cuja “louricidade” caracteriza por um lado debilidade e fraqueza e por outro traição e engano: «cabelos claros cor de trigo» (ivi, p. 169), sugere Eça de Queirós em Singularidades falando das mulheres de Arcos; «loira como uma vinheta inglesa» (ivi, p. 172), traçando o perfil da protagonista feminina deste conto, «fina cabeça loira e amorosa» (ivi, p. 179), «caráter loiro, como o cabelo – se é certo que o loiro é uma cor fraca e desbotada» (ivi, p. 184), «loira doçura» (ivi, p. 186). O jogo narrativo da duplicidade atravessa dessa maneira o inteiro conto do autor português que com este texto publicado em 1873 começa a caraterizar a sua obra como realista.


2. O filme de Manoel de Oliveira

Se o caso contado pelo autor não é nada simples, menos simples ainda é a transposição cinematográfica que dele faz Manoel de Oliveira (1908-2015), quando em 2009, pela Produção filmes do Tejo, – exatamente 136 anos depois da publicação do conto – vai adaptar a linguagem narrativa à semiótica fílmica, adequando a semântica discursiva à tematização, no caso de elementos abstratos presentes em ambos os textos, e à figurativização no caso de elementos concretos traduzidos do texto visual. Sobre certo caráter cinematográfico da ficção queirosiana escreveu Carlos Cordeiro de Mello no lema “Cinematismo e Imagicidade” dentro do Dicionário de Eça de Queiroz, coordenado por Alfredo Campos Matos:

 

É notável que essa feição «cinematográfica», visível em outros autores igualmente anteriores ao cinema [...] Dostoiévski, Tolstói, Puchkin, Dickens e muitos outros romancistas, como também poetas, pintores, escultores e dramaturgos – seja em Eça a marca mais genuína de sua expressividade, ele cuja experiência com o cinema se limitou a assistir a exibições do animatógrafo, em Paris, já no ano da sua morte, quando o cinema apenas gatinhava. Não se trata apenas, como poderia parecer à primeira vista, de um «cinema literário», ou de uma literatura que utilizasse conscientemente os recursos da linguagem cinematográfica, como é o caso de vários escritores modernos [...]. No caso de Eça, trata-se de uma verdadeira antecipação, que nos leva a pensar se a origem do cinema, enquanto linguagem estruturada, não estaria, como propõe Eisenstein, na própria literatura. (Mello 2015, p. 305)

 

E, citando a crónica Uma Colecção de Arte como exemplo máximo do cinematografismo queirosiano, afirma que:

 

Numa coleção de arte, como na literatura, Eça sabia-o bem, é a capacidade de disposição dos detalhes de forma adequada que produzirá a imagem global desejada. Dessa forma, o sucesso na resolução do mais global depende integralmente da escolha apropriada das imagens parciais, sejam elas sonoras, visuais ou literárias (ibidem).

 

Além disto, a prosa de Eça de Queirós, de acordo com Carlos Reis, possui um caráter de «transtextualidade» (Reis 1999, p. 179) que contribui a propiciar leituras, interpretações e traduções inter-artes: não se esquecerão as numerosas adaptações de obras queirosianas, uma das quais, OCrime do Padre Amaro, no mesmo ano de 2005, da autoria do cineasta Carlos Coelho da Silva.

Manoel de Oliveira, que com a idade de 101 anos decidiu percorrer Singularidades através da câmara, observa um Macário (representado por Ricardo Trêpa) e uma Luísa (representada por Catarina Wallenstein, a mesma atriz que em 2014 seria Maria Eduarda, em Os Maias, pela direção de João Botelho), protagonistas da narrativa queirosiana, colocando-os com a liberdade que pertence aos grandes artistas, num movimento temporal que abrange um Portugal de finais do século XIX deslocado em tempos modernos: desta forma temos uma caraterização cultural de personagens que só poderia ser do século queirosiano, mas ao mesmo tempo carros a passarem na rua que só podem pertencer à nossa época. Assim a moeda usada não são os réis como no conto queirosiano mas os euros; as balaustradas das escadas «em caracol» (Queirós 2009, p. 174) são de espesso cristal temperado; a diligência que ia ao «trote esgalgado dos seus magros cavalos brancos» (ivi, p. 168) torna-se um lindo comboio; os candeeiros de azeite da casa do tio Francisco (representado no film por Diego Dória), o castiçal e o «candeeiro de latão lustroso e antigo» (ivi, p. 169) passam a candeeiros elétricos às vezes bem lustrosos; o primeiro desfalque assinalado não é «um pacote de lenços da Índia» (ivi, p. 175) mas dinheiro, simplesmente vil dinheiro da época contemporânea; para Cabo Verde vai-se de voo TAP e não de «viagens trabalhosas nos mares inimigos» (ivi, p. 186); o tio Francisco para fazer barba à janela utiliza máquina de barbear elétrica; e o vestuário não corresponde ao de finais do século XVIII: uma história contada sem caraterizar particularmente a época, sem querer reproduzir uma especificidade temporal, mas mesmo assim recortada completamente dentro do enredo queirosiano. Desta forma o autor da história entra no filme oliveiriano como busto arquitectónico, como escultura, como círculo a ele sucessivamente destinado que o fixa noutro tempo e noutro espaço, um espaço no qual anacronisticamente o ator Luís Miguel Cintra declama os cantos 32 e 33 do Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro em Fernando Pessoa (1888-1935) e Ana Paula Miranda toca melodiosamente a sua harpa, num harmonioso movimento de antigo e moderno, numa escolha de objetos e formas que evocam tempos passados e tornam fluidos os movimentos e as sequências presentes: uma transposição fílmica, portanto, em que o autor do conto se torna espaço e objeto da história e se projeta na continuidade literária (Queirós / Pessoa) noutro grande escritor que nasceu apenas dois anos antes dele morrer. A liberdade do movimento de Manoel de Oliveira confere ao texto aquela unidade de conteúdo que permite juntar o passado com o presente sem marcar o filme apenas como “adaptação” da obra queirosiana: o filme de Manoel de Oliveira apresenta-se como obra própria com grande fidelidade em relação à obra de que foi adptado mas totalmente pessoal, original e livre.


3. Plano-sequências

Os plano-sequências que o diretor escolhe coincidem com os segmentos narratológicos do escritor numa discursivização que corresponde ao «percurso gerativo da significação» (Batista 2011, p. 39)1: o ritmo feito de passagens extremamente sintéticas e rápidas, com a dimensão de um conto ao qual correspondem 60 minutos (uma hora) onde síntese e pormenor se intersecam num espaço temporal conciso e essencial. O enredo é constituído por mini-diálogos criados por câmaras fixas onde o olhar do locutor às vezes perde-se sem pontos de vista, como acontece por exemplo na primeira cena do film. A essencialidade oliveiriana, que segue a linearidade do conto queirosiano numa coesão de unidades de espaço e de acção, e que é determinada também pela falta de banda sonora externa, enriquece-se apenas do som do ambiente, de ruídos internos de portas, passos, comboio, ruas e sobretudo sinos e relógios a marcarem o tempo.  

O texto fílmico assim como o conto queirosiano fecha-se na extenção de uma viagem, uma viagem que vai delimitar o espaço do protagonista narrador e que vai ao mesmo tempo acompanhar o filme em todas as suas passagens começando pelo exórdio: diligência/comboio, passageiro/passageira, cocheiro/bilheteiro representam desta forma as equivalências das estruturas da edição e do filme. Uma viagem simbólica através da qual a personagem desabafa, sem porém ter nenhuma evolução: o percurso do protagonista que parte como caixeiro e regressa ao seu mesmo trabalho, que no princípio da história «não tinha [...] sentido Vénus» (Queirós 2009, p. 171) e no fim repudia duramente a mulher ladra/cleptómana, que no princípio mora na casa do tio e no fim prossegue na mesma, apresenta-se como circular; a evolução pessoal e psicológica delineia-se como involução; o seu movimento parece mais regressivo do que progressivo. Uma viagem anti-romântica, portanto, um percurso que deixa tudo como não esclarecido «Como partiu nessa tarde para a província, não soube mais daquela rapariga loira» (ivi, p. 193): é este movimento inacabado, este percurso aberto e entristecido, que Manoel de Oliveira marca com o ruído do comboio que no final do filme se afasta em campo aberto. A transcodificação na passagem dos sinais textuais escritos para os sinais fílmicos verbais e imaginíficos não é só transmodalização como também amplificação da estrutura narrativa e discursiva.


4. Espaços fechados

Os espaços fechados representam o mundo que Eça de Queirós critica e censura em toda a sua produção: são os ambientes burgueses descritos nos pormenores onde se recitam versos e se joga às cartas com fichas que desaparecem. Os ambientes circunscritos em que se articula o texto são bem delimitados:

- é o gabinete onde trabalhava Macário: «Macário tinha a sua carteira no primeiro andar por cima do armazém, ao pé de uma varanda» (ivi, p. 171) e é aí que o coloca Manoel de Oliveira, num escritório definido apenas por uma secretária, um pc, papéis, cartas e corta-papel, uma porta-janela com uma varandinha de parapeito em ferro: é o mundo do Macário simples e ordenado, feito de contas e de organização que se vai chocar com o misterioso e enigmático jogo de cortinas para cima e para baixo do quarto de frente onde uma «pequena janela de peitoril, com caixilhos verdes» (ivi, p. 172) e «cortinas de cassa bordada» (ivi, p. 173) correspondem exactamente aos elementos reproduzidos por Manoel de Oliveira. Os objetos que determinam estes dois espaços são completamente opostos: o primeiro arranjado, disciplinado e metódico feito de papéis e contas, o segundo nebuloso, opaco, sombrio constituído por cortinas-barreiras e por um adorno de janela e sobretudo por um leque que era «uma ventarola chinesa, redonda, de seda branca com dragões escarlates bordados à pena, uma cercadura de plumagem azul, fina e trémula como uma penugem e o seu cabo de marfim, donde pendiam duas borlas de fio de oiro» (ibidem).



Figura 1. Luísa (Catarina Wallenstein) à janela. Do filme Singularidades de uma rapariga loiradireção de Manoel de Oliveira, dvd distribuído pela CG Home video, 2013.


As duas janelas representam portanto o espaço entre o mundo exterior e o interior, o filtro dos segredos e dos sentimentos, o resguardo e o abrigo que protege e ao mesmo tempo engana, a moldura de um quadro à Jan Vermeer onde a donzela è retratada a meio-busto com a sua cabeça em direcção ao espetador, em favor da luz que entra pelos vidros abertos de par em par, mas com o olhar perdido no vazio dos pensamentos: 



Figura 2. Ainda Luísa à janela.


- é a loja do tio Francisco onde o olhar dos dois protagonistas se cruzam pela primeira vez à volta de tecidos que parecem criar metaforicamente a urdidura não apenas dos lenços da Índia ou da casimira procurada no balcão, mas o inteiro enredo amoroso: tecidos leves que se entrançam e que representam o entrecho da relação afetiva – são as «cortinas de cassa bordada» (ibidem) que se podem erguer devagarinho, o leque de seda branca bem manuseado não mãos da estilizada Luísa abanado com movimentos entre o sedutor e o entorpecido, os tecidos preciosos e exóticos procurados na loja e em Manoel de Oliveira as amostras de tecidos penduradas na parede do escritório do Macário;

- é o salão onde os dois se falam pela primeira vez de forma mais extensa e onde se começa a construir a trama amorosa: um salão que o Manoel de Oliveira toma a liberdade de transplantar na época contemporânea. Assim a casa de um «tabelião muito rico» (ivi, p. 176) nas mãos do cineasta português torna-se o círculo queirosiano, «os motetes ao cravo» (ibidem) assumem a forma do primeiro Arabesque de Debussy pelo som da harpa, os poemas recitados pelo poeta de «cabelos compridos, o nariz adunco e fatal, o pescoço entalado na alta gola do seu frak à Restauração» (ibidem) chegam a ser os versos pessoanos declamados no círculo de Eça de Queirós;

- é a triste hospedaria na Praça da Figueira que Eça apenas acena mas sobre a qual Manoel insiste através de fotogramas escuros onde aparece uma cama mal arranjada, um velho armário, uma mesinha de cabeceira ou uma mesa encostada à parede, uma cadeira, tudo escassamente iluminado;

- é a joalharia onde se consome o desfecho dramático: os anéis que eles querem ver com pedras «ametista, granada» (ivi, p. 190) – a coincidir nos dois textos – representam a falsidade do que reluz, exatamente como todos os candeeiros que Manoel de Oliveira coloca no salão do tabelião e como os quebra-luzes acesos nas montras das lojas situadas nas estradas onde Macário passa.



Figura 3. Luísa e Macário (Ricardo Trepa) na joalharia.


A estes espaços fechados, que o cineasta reproduz com grande habilidade não deixando escapar nenhum pormenor do escritor, corresponde um vazio ditado pela transposição temporal: a estalagem na qual os viajantes param durante a noite. Em Eça de Queirós aparece a mesa durante uma ceia bem descrita nos pormenores de carne de galinha, arroz e vinho verde, assim como o corredor da albergaria onde são colocados bem depositados fora de cada porta os sapatos de cada inquilino. Manoel de Oliveira, que não deseja propôr um filme de costume, transfere esse vazio enriquecendo imagens da casa do tio onde, ao lado das queirosianas caixas de rapé a representarem a indiferência humana encoberta de falsa respeitabilidade, aparecem mobílias apenas descritas em Queirós.  

Manoel de Oliveira traduz os espaços sem cair em fáceis entropias: tudo é recuperado e reproduzido, ora colocado no seu justo lugar, ora deslocado com vista a elaborar uma tradução intersemiótica target oriented.


5. Espaços abertos

Poucos os espaços abertos, que são quase omitidos quer por Eça quer por Manoel de Oliveira: são as poucas saídas à rua e a viagem  para Cabo Verde onde Macário se torna rico. A rua é o lugar de passagem mas ao mesmo tempo o lugar do perigo. Eça vê na rua «o amigo de chapéu de palha» (ivi, p. 178), o amigo-canalha, que o introduz no salão do tabelião, que o envia para Cabo Verde e que o burla até o reduzir na miséria pela segunda vez. Um chapéu de palha que corre circularmente por toda a narração queirosiana e que Manoel de Oliveira com o seu olhar perspicaz sublinha e evidencia ironicamente através do tom caricatural no homem que perde o seu chapéu ao pé do rio: a pergunta insistente para o chapéu, virada para o desesperado Macário que perdeu tudo – uma das poucas passagens ausentes no texto queirosiano – simboliza a situação em que a “perda” de alguma coisa que cobre a cabeça torna-se metáfora da perda do discernimento e do juízo que leva ao desespero. A insistência oliveiriana marca portanto enfaticamente o olhar metafórico queirosiano.

Também o trecho de Eça em que o autor é colocado em Cabo Verde é retomado pelo cineasta com uma não equivalente insistência. O percurso sintetizado em Eça de Queirós em quatro linhas é de facto representado por Manoel de Oliveira numa sequência muito eloquente na qual à leitura de uma carta do Macário corresponde a visão do escritório onde ele antes trabalhava ocupado por outra pessoa e tudo filtrado através das cortinas: o olhar nessa sequência passa do outro lado. Pela primeira vez nota-se o  mundo visto através dos olhos da rapariga loira: duas cortinas a cobrirem o mundo do outro, cortinas a quebrarem o espaço do longínquo, uma distância assinalada pelo obstáculo da visão antigamente alegre e agora triste pela ausência do amado. Manoel de Oliveira cria esta mudança de ponto de vista, uma visão totalmente ausente em Eça de Queirós. Com o enquadramento do além cortina, a partir daquele quarto habitado pela rapariga loira e a mãe dela, Manoel de Oliveira põe-se – pelo menos num instante – no sítio onde Eça dentro do conto nunca se colocou: do lado da mulher, da solidão dela, da tristeza da ausência do homem emigrante. O vazio queirosiano, através deste enquadramento oliveiriano, enche-se de um elemento novo, de uma unidade perceptiva que torna o filme mais equilibrado em relação aos dois protagonistas. De resto, todas as sequências do filme são ligadas por imagens escuras, sem recorrer a desvanecimentos, criando quadros instantâneos nulos que marcam o tempo, juntamente a fragmentos de Lisboa filmada com câmara fixa em momentos diferentes do dia como elemento de homogeneidade e de uniformidade para indicar o ritmo e o elemento estilístico recorrente. Sequências criadas através de cortinas que se baixam e se levantam, portas que se abrem e se fecham, escadas que se sobem e se descem: o filme cria visivamente as passagens que no conto são entregues a um narrador às vezes nem tão fácil de captar.  O tempo está marcado no filme por sinos a dobrar e horas a tocar como «o sino da porta da capela do paço» (ivi, p. 179) que «tocava a finados» (ibidem). O próprio ritmo é marcado com as mesmas pausas do Eça, com os mesmos diálogos sobretudo no momento em que a Luísa pede ao Macário que si dirija à sua mãe para encaminhar o casamento: «- Porque não vens pedir à mamã?» (ivi, p. 184), «Não tenho arranjo nenhum» (ibidem), ou nos diálogos dos momentos em que o tio rejeita duas vezes a autorização para casar com a rapariga loira, assim como os diálogos finais na joalharia: os diálogos são retomados por Manuel de Oliveira palavra por palavra numa perfeita coincidência de unidades fraseológicas.

Mas sobre qualquer espaço aberto Manoel de Oliveira deixa respirar, na sua complexidade figurativa, a cidade de Lisboa, com o castelo de São Jorge no topo da colina, que o cineasta põe como numa moldura, a Praça da Figueira com a sua calçada, poucas ruas com os ruídos de uma cidade moderna como para dar ao público um filme sem idade, quase imóvel e inerte, por sua vez literário e, por isso, destinado à eternidade.


6. Os objetos

Os objetos que, como claros sinais, entram nos espaços (quer abertos quer fechados) são atentamente estudados no conto como no filme. O cineasta não deixa para trás nenhum elemento que Eça propõe. Chama a atenção até a bengala que na última parte do conto aparece nas mãos do triste Macário e que Manoel de Oliveira entrega, pelo contrário, ao senhor de idade que passa à frente da montra da joalharia. O cineasta não perde nenhum pormenor presente no conto e quando esse lhe parece inadequado pela própria adaptação o coloca noutro momento e noutra circunstância sem por isso perder a simbolicidade representada por Eça de Queirós. Até os pormenores são traduzidos e assimilados no contexto fílmico sob outra luz e outro olhar num equilíbrio constantemente presente: o azul do vestido que a rapariga loira veste na última passagem do conto é traduzido por Manoel de Oliveira através de uma translação – a menina Luísa de facto é várias vezes vestida em azul durante o filme (ao se debruçar da janela, por exemplo) mas na tirada final Manoel de Oliveira prefere escolher outro vestuário, outra cor (branco e preto), outra imagem como para marcar o engano revelado que já não se confaz à imagem ideal do princípio.


7. As personagens

Também as personagens queirosianas, apresentadas na cena fílmica como encadeamento de figuras, são examinadas e estudadas atentamente em todos os seus movimentos. A imagem física do Macário queirosiano pode não corresponder à projeção filmica: ele não tem «calva larga, luzidia e lisa, com rapas brancas que se lhe erriçavam em redor: e os seus olhos pretos, com a pele  engelhada e amarelada, e olheiras papudas» (ivi, p. 167), ao rapaz que senta no comboio novecentesco, de cabelo forte e abundante e com uma agradável covinha no queixo que nada se pode comparar com «o queixo saliente e resoluto» (ibidem) do conto; ele não veste um casaco «com canhões de veludinho» (ibidem) do Eça, mas o cineasta preserva a «cor de pinhão» (ibidem) deste. A lembrança que em Eça de Queirós é do velho, em Manoel de Oliveira é do próprio jovem, talvez de um permanente jovem. Nem Manuel de Oliveira o deixa longamente entristecido no seu mudo silêncio duma sala de jantar de uma estalagem: ele desata logo a falar com a vizinha de assento no comboio (representada por Leonor Silveira) a qual repete porém servilmente o provérbio eslavo da Galícia assim como posto em Eça: «o que não contas à tua mulher, o que não contas ao teu amigo, conta-o a um estranho» (ivi, p. 170). Mas as imagens mesmo diferentes desvelam o mesmo objetivo narratológico: começar um flash back longo e articulado para os dois percursos semióticos narrativo e fílmico. O provérbio, símbolo da tradição, representa desta forma o elemento de conjunção entre os dois produtos: o conto e o filme. Mas além da figura física existe uma personagem bem delineada por Manoel de Oliveira nas suas paixões, nos seus contrastes humanos, nas suas escolhas de vida. Uma figura que a câmara capta de frente de uma forma clara e redonda, com barba ou sem barba (quase a indicar fases da vida diferentes) mas sempre limpa e linear.



Figura 4. Macário.


Ao lado de Macário ergue-se a figura do tio Francisco do qual Manoel de Oliveira mantém a «possante estatura» (ivi, p. 182), «brutal e idiota» (ivi, p. 183), «a dureza da sua voz», «os seus princípios antigos, autoritários e tirânicos, e a brevidade telegráfica das suas palavras» (as duas citações: ivi, p. 182). A escolha do físico alto e robusto do ator Diogo Dória faz com que estes aspetos queirosianos sejam mantidos. O seu enquadramento quase sempre de perfil, a parte a cena de frente em que censura a presença do Macário na loja para espreitar a rapariga loira, demonstra como Manoel de Oliveira soube recortar esta austeridade grego-espartana.



Figura 5. Macário tenta convencer o tio Francisco (Diogo Dória).

 


Figura 6. Macário e o tio Francisco em casa.


Doutro lado a figura feminina da Luísa que é examinada e observada com a mesma atenção por Manoel de Oliveira: a insistência da câmara no seu perfil a delinear o nariz delicado dá a entender a leitura atenta e demorada do conto por parte do diretor; os olhos descritos por Eça com «o seu olhar azul» (ivi, p. 184) que fez com que o Macário se sentisse «envolvido na doçura de um céu» (ibidem) são descritos pela câmara através de lentas aproximações e primeiros planos que os isolam do resto do fotograma; o amor dela sem particular paixão mas com os movimentos necessários aos estereotipos femininos como o beijo dado de pé no patamar do portão com meia perna levantada para trás.


 

Figura 7. Luísa.


As suas mãos pequeninas, «os dedos finos e amorosos» (ivi, p. 192), são bem escolhidas na personagem fílmica. Da boca Eça descreve o sorriso «destraído, espiritual, arcangélico» (ivi, p. 180), «brancos dentinhos finos, todos esmaltados» (ivi, p. 190) que justificam a atenção do diretor nos lábios carnudos e sensuais da protagonista: lábios grossos, bem desenhados, ricos de herótico batom encarnado. 

Na mãe da rapariga, a viúva Vilaça, Manoel de Oliveira tenta percorrer os mesmos traços do romance: vestida de preto, «cabelos violentos e ásperos» (ivi, p. 171) e dela o diretor segue as próprias palavras do autor «aquela mulher aos vinte anos devia ter sido uma pessoa cativante e cheia de domínio» (ivi, p. 191).


8. Considerações finais

O impulso à fruibilidade plurisensorial da manifestação artística nasceu com o Modernismo e dele nasceu o cinema tal como hoje o conhecemos. No próprio Portugal, Fernando Pessoa advertia a necessidade de tornar visual a poesia quando teorizava o Interseccionismo e o Sensacionismo e os atuava, respetivamente, em Chuva Oblíqua e nos poemas de Álvaro de Campos. A adaptação cinematográfica de obras literárias advém desse impulso, e na sua base assenta uma leitura da obra-fonte feita ao microscópio óptico, uma análise do texto ficcional visada à localização da sua cadeia semiótica. A partir dos semes próprios de um determinado tipo de texto, o sujeito interpretante compõe outra cadeia, com os semes idóneos a compor uma nova forma de arte. Nas palavras de Charles S. Peirce, «A significação de uma representação é outra representação. Consiste, de facto, na representação despida de roupagens irrelevantes. Mas nunca se conseguirá despi-la por completo; muda-se apenas de roupa mais diáfana» (Peirce 1974, p. 99). A importância dos detalhes descritivos como antecipadores textuais dos desenlaces do enredo – o leque, a mobília, tudo o que constrói o ambiente de Macário e que sugere antecedentes sobre a vida da misteriosa Luísa – deixa claro o facto que eles não são, como já referiu Roland Barthes, meros efeitos de real. Não será por acaso que a literatura realista, em cujo cânone mais se inscreve o uso desses elementos do texto, será, junto a romântica, a que mais produtos proporcionará à obra dos maiores cineastas do século XX – que levaram ao ecrã os mais ilustres romances de Stendhal, Dickens, Flaubert, Zola e Eça de Queirós, entre outros.  Destacaram-se aqui alguns dos detalhes textuais que, em Singularidades de uma Rapariga Loira, foram descodificados por Manoel de Oliveira de maneira a constituir a cadeia sêmica da obra no meio cinematográfico. A equação entre os elementos do texto literário e os seus correspondentes num filme ambientado na época atual determina a historicidade dos dois textos (cfr. Plaza 2003), uma vez que o texto cinematográfico é hipodiegético e o do narrador realista tende a reduzir a diegese em favor da mímese, em nome do critério de objetividade que define maxime o cânone realista.

Tudo isto revela um desenho unitário no texto do genial Manoel de Oliveira, que ao traduzir o conto queirosiano segue o seu próprio desenho aproximando-o ao leitor sem porém se afastar da mensagem social e simbólica do autor realista português: respeitando os procedimentos tematico-figurativos e deixando nas últimas cenas uma Luísa a sós com o seu drama pessoal e familiar, reduzida a um manequim ou a uma boneca de pernas largas, descomposta, abandonada num maple, fechada na sua triste condição e na sua  insatisfação solitária em contraste com os ricos tecidos das almofadas ordenadamente colocadas no sofá, e um comboio que assobia fugindo rápido em quanto a natureza com passarinhos a cantarem retoma o seu percurso natural da vida que continua além das nossas tristes condições, como os rios de Cabo Verde que na carta oliveiriana de Macário escorrem sem considerar as secas da terra...


 

Figura 8. Cena final.

Note
  • 1

    Utilizamos esta expressão de Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista que bem pode ser aplicada a este contexto.

Bibliografia
  • Batista 2011 = Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista, O percurso temático-figurativo do romance oral O conde Alarcos, «Acta semiotica et linguistica», vol. 16, anno 35, n° 2, pp. 37-58.

  • Felici 2018 = Maria Serena Felici, La prosa dell’ironia. L’aggettivazione qualificativa in “Singularidades de uma rapariga loira” di Eça de Queirós, in Katia de Abreu Chulata (a cura di), Portoghese in azione. Português em ação, Bracciano, Tuga.

  • Mello 2015 = Carlos Cordeiro de Mello, Cinematismo e Imagicidade, in Alfredo Campos Matos (Organização e Coordenação), Dicionário de Eça de Queiroz, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, pp. 305-305.

  • Peirce 1974 = Charles S. Peirce, Escritos coligidos, «Os Pensadores», São Paulo, Abril Cultural.

  • Plaza 2003 = Julio Plaza, Tradução Intersemiótica, São Paulo, Editora Perspectiva.

  • Queirós 2009 = José Maria Eça de Queirós, Contos, vol. I, edição de Marie-Hélène Piwnik, edição crítica das obras de Eça de Queirós, coordenada por Carlos Reis, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

  • Reis 1999 = Carlos Reis, Escrita literária e posteridade cultural. Sobre a edição crítica das obras de Eça de Queirós, in Idem, Estudos Queirosianos. Ensaios sobre Eça de Queirós e a sua obra, Lisboa, Presença, pp. 176-186.

Vedi tutto
Filmografia
  • Manoel de Oliveira, Singularidades de uma rapariga loira, direção de Manoel de Oliveira, dvd distribuído pela CG Home video, 2013.

Vedi tutto
Informazioni
Cita come: Mariagrazia Russo, Singularidades de uma rapariga loira: uma tradução intersemiótica in DILEF. Rivista digitale del Dipartimento di Lettere e Filosofia - 2 (2023), pp. 107-122. 10.35948/DILEF/2023.4315